A vida é um fenômeno biológico estranho. Talvez por estarmos dentro dela, nós, os viventes, não a compreendamos totalmente. Ao mesmo tempo que pulsa em nossas veias, ela se manifesta nos seres que vivem fora de nós, com formas e cores às vezes diversas, às vezes semelhantes às nossas. São formas e cores que, de alguma maneira, comunicam-se misteriosamente entre si ‒ e também conosco. Nesse sentido, todo organismo vivo também é o nosso: vemos metáforas do nosso corpo em toda a biologia; buscamos, na natureza, reflexos e sugestões do nosso ser material.
Lavalle pesquisa a forma biológica. Na sua obra, animais e vegetais formam corpos híbridos, quimeras em que se misturam diferentes espécies e gêneros de seres vivos. São imagens estranhas e inquietantes: como as antigas gravuras de animais fantásticos, são indagações sobre a essência da matéria viva, trazendo consigo a sombra inquietante da morte e da putrefação ‒ que são também outras manifestações de vida. A hibridação de animais e vegetais na pintura de Lavalle corresponde igualmente às técnicas empregadas pelo artista, misturando procedimentos da pintura tradicional a procedimentos da gravura, como o carimbo, a monotipia e o estêncil. Na sua manifestação física, a obra de Lavalle busca recriar a propagação típica da biologia, daí por que a sua tendência às grandes dimensões, à pintura que envolve o corpo do espectador, que pede o seu movimento de aproximação e distanciamento e provoca, ao mesmo tempo, atração e repulsa.
As bioformas aqui exibidas são construídas por associações intuitivas entre seres e também imagens de diferentes gêneros, articulando elementos da figuração tradicional, como a paisagem e a natureza-morta, com a imagem gráfica, científica ou mesmo cinematográfica. Nessa pesquisa poética, o organismo desconstruído e reconstruído como quimera se configura como metáfora do humano e de suas condições mentais e sociais: de maneira às vezes velada, às vezes mais explícita, surgem reflexões e sugestões acerca do consumismo, da sexualidade e da mitologia. A pintura de Lavalle, assim, encena a proliferação virulenta e pulsante da matéria da vida – ameaçadora, asquerosa, fascinante e sensual – para falar da própria condição humana.
Life is a strange biological phenomenon. Perhaps because we are inside it, we, the living beings, we do not fully understand it. As it pulses through our veins, it manifests itself in beings that live outside of us, with shapes and colors that are sometimes different, sometimes similar to ours. They are shapes and colors that somehow communicate mysteriously to each other – and also to us. In this sense, every living organism is also part of us: we see metaphors of our body throughout biology; we seek, in nature, reflections and suggestions of our material being.
Lavalle researches the biological form. In his work, animals and plants form hybrid bodies, chimeras in which different species and genera of living beings mix. They are images strange and disturbing: like the old engravings of fantastic animals, they are questions about the essence of living matter, bringing with it the disquieting shadow of death and putrefaction – which are also other manifestations of life. The hybridization of animals and vegetables in Lavalle’s painting also corresponds to the techniques employed by the artist, mixing traditional painting procedures with engraving procedures, such as stamp, monotype and stencil. In its physical manifestation, Lavalle’s work seeks to recreate the typical propagation of biology, hence its tendency toward large dimensions, to the painting that involves the spectator’s body, which asks for its movement of approximation and distance, and causes, at the same time, attraction and repulsion.
The bioforms shown here are built by intuitive associations between beings and images of different genres, articulating elements of traditional figuration, such as the landscape and still life, with the graphic, scientific or even cinematographic image. In this poetic research, the organism deconstructed and reconstructed as a chimera is configured as a metaphor for the human and their mental and social conditions: in a way that is sometimes veiled, sometimes more explicit, there are reflections and suggestions about consumerism, of sexuality, and mythology. Lavalle’s painting thus stages the virulent and the pulsating matter of life – menacing, disgusting, fascinating and sensual – to speak of the human condition itself.
Muitos artistas primam por um imaginário na arte, cujo material utilizado serve para criar um ambiente de calma, tranquilidade e fluidez. Mas Luiz Lavalle Filho, o Lavalle, é um artista que atua como um alquimista, utilizando os recursos materiais para colocar em primeiro plano exatamente a matéria, em toda a sua crueza e carnalidade.
Não queremos dizer aqui que escapam aos seus olhos e mãos a fluidez e a poesia. Pelo contrário. Mas, no caso dele, a fluidez reside no plano de fundo, que nos transporta a um ambiente que transcende ao primeiro plano, contrastando a rudeza com a luminosidade e a transparência.
Já a poesia se revela mais na linha de Rimbaud ou de Augusto dos Anjos, impondo-se o reconhecimento da aspereza, da carnalidade e da aceitação de nossa condição num mundo em que o matérico é, ao mesmo tempo, condição e impedimento. Sim, condição, porque é através da matéria que podemos transpor a densidade da vida e adentrar outras paragens alegóricas que nos possibilitam o sonho; mas também é dela que nos vem o impedimento, pela dor, pelo dilaceramento, pelo peso e, por fim, pela morte.
Todavia, a alquimia pictórica de Lavalle se permite a relação com outras possibilidades, não pictóricas, justamente para criar uma impressão mais forte de verfremdungs-effekt, ou “estranhamento”, aos moldes brechtianos, fazendo com que um pedaço de remendo de pano, costurado sobre a tela pintada, crie-nos uma aproximação com a racionalidade, ou seja, o reconhecimento do real, da matéria em si, do mundo manifesto em carne, sangue, plasma, pigmento, óleo e água.
Mas não é só de líquido que a obra de Lavalle é composta. Nela sobressaem os outros elementos alquímicos: a terra se manifesta nos marrons, o fogo nos ocres e avermelhados e os azulados no ar e no céu. Mas o branco é sempre presente, aproximando-nos da liquefação.
A obra de Lavalle transita pela paisagem, pela natureza-morta, pelo retrato, mas fundamentalmente pelos extratos matéricos que nos reservam uma pergunta secreta, revelada apenas a olhos que perscrutam com mais profundidade:
Onde está a essência perdida do ser?
Artista visual, curador e professor de História da Arte
Many artists strive for an image in art, whose material is used to create an environment of calm, tranquility and fluidity. But Luiz Lavalle Filho, Lavalle, is an artist who acts as an alchemist, using material resources to put into foreground exactly this matter, in all its rawness and carnality.
We do not mean here that fluidity and poetry escape your eyes and hands. On the contrary. But, in this case, the fluidity resides in the background, transporting us to an environment that transcends the foreground, contrasting roughness with luminosity and transparency.
Its poetry, on the other hand, reveals itself more along the lines of Rimbaud or Augusto dos Anjos, imposing an acknowledged roughness, carnality, and acceptance of our condition in a world in which the material is both a condition and an impediment. Yes, condition, because it is through matter that we can cross the density of life and enter other places allegorically that allow us to dream; but it is also from it that the impediment comes to us: by pain, by rending, by heaviness, and, finally, by death.
However, Lavalle’s pictorial alchemy allows the relationship with other non-pictoral possibilities precisely to create a stronger impression of verfremdungs-effekt, or “strangeness,” in the Brechtian mold, causing a piece of cloth, sewn on the painted canvas, to create an approximation with rationality, or that is, the recognition of the real, of matter itself, of the world manifested in flesh, blood, plasma, pigment, oil and water.
But it’s not just liquid that Lavalle’s work is composed of. In it, the others stand out in alchemical elements: earth manifests itself in browns, fire in ochers and reds, and the bluish ones in the air and in the sky. But white is always present, bringing us closer to Liquefaction.
Lavalle’s work transits through landscape, still life, and portrait, but fundamentally by the material extracts that reserve in us a secret question, revealed only to eyes that scrutinize more deeply:
Where is the lost essence of being?
Visual artist, curator and Art History teacher
O imaginário e a memória, a emoção expressa com vibração, o simbolismo, a figuração com traços da abstração, a mitologia, a psicologia, a sexualidade. Características que marcam o trabalho do artista plástico Luiz Lavalle e são intrínsecas ao Neoexpressionismo, movimento artístico que surgiu na Alemanha no final dos anos 70 e espalhou-se pela Europa e posteriormente Estados Unidos. O Neoexpressionismo buscava resgatar a pintura como meio de expressão retomando certos traços do Expressionismo, do Simbolismo e do Surrealismo, ao voltar a registrar os sentimentos por meio da arte.
Dentro deste contexto, Lavalle cita a arte dos artistas alemães Gerhard Richter e Anselm Kiefer como duas de suas referências artísticas mais expressivas. “Trabalho a condição humana, a fragilidade do ser, vida e morte, questões sobre a transitoriedade do tempo e da existência, muitas vezes utilizando de ironia”, relata. Lavalle explora principalmente a tinta a óleo e acrílica nas pinturas, o grafite no desenho, mas também pode fazer uso da fotografia na composição de algumas das suas obras.
A poética do artista passeia por elementos como cor, textura, sobreposição e temática, lançando mão de diferentes operações pictóricas efetuadas nas pinturas. Em muitas de suas obras existe um tênue limite entre figura e fundo, entre o figurativo e o abstrato, liso e rugoso, frágil e resistente, brilhante e opaco, geométrico e orgânico. Tintas de composições diferentes são utilizadas pelo artista para valorizar a ideia de camadas externas e internas. Transparências são efetuadas com vernizes, proporcionando colorações exageradas, brilhantes, carregadas de carnalidade. Seu arsenal de recursos é amplo e diversificado, e expressa também aí o caráter neoexpressionista.
Lavalle compôs as obras utilizando a técnica de lavagem; depois da aplicação da tinta acrílica no tecido preto, a pintura foi lavada com água sanitária. Tal lavagem, ironicamente, é uma alusão à limpeza social realizada nos últimos anos no Brasil.
Já em sua série mais recente de pinturas, Lavalle traz uma nova abordagem. Idealizada a partir de imagens retiradas da web, a Série Eugenia vai ao âmago da problemática social. O conjunto de imagens concentra-se no embate sócio-político atual brasileiro, evidenciando as principais mortes e perseguições a líderes comunitários, políticos e comunidades, que vêm na contramão do sistema vigente.
Ao criar a obra, o artista plástico nos apresenta a narrativa caótica vivenciada no cotidiano. As fotos jornalísticas, que serviram de base para as pinturas, foram escolhidas e manipuladas digitalmente. As imagens da Série Eugenia funcionam em conjunto, formando um grande políptico, que denuncia e propõe uma reflexão sobre a violência e opressão do sistema. Lavalle compôs as obras utilizando a técnica de lavagem; depois da aplicação da tinta acrílica no tecido preto, a pintura foi lavada com água sanitária, evidenciando a imagem no suporte. Tal lavagem, ironicamente, é uma alusão à limpeza social realizada nos últimos anos no Brasil. Como nos noticiários, o artista plástico utilizou palavras-chave para reforçar a ideia do processo pintado.
Nascido em 1980 em Curitiba (PR), Lavalle desenha desde criança. “Era meu principal passatempo; filho “temporão”, não tinha muitas crianças ao redor para brincar, e assim o desenho era meu amigo”, conta. Os anos se passaram e o desenho nunca foi abandonado. Na adolescência ainda fez um curso de quadrinhos, no qual descobriu o nanquim e a aquarela. Conta que acabou não fazendo nenhum quadrinho, pois passou o curso todo fazendo a capa do livrinho. Desde então percebeu que a cor e a tinta o fascinavam, e que queria trabalhar com arte, mais especificamente com pintura.
Acabou por ingressar na Faculdade de Artes do Paraná, no curso de Licenciatura em Artes Plásticas, onde descobriu também outra paixão da sua vida, que é lecionar. Lavalle é pós-graduado em Artes Visuais. Atualmente trabalha como artista plástico e professor do Museu Alfredo Andersen nos cursos de pintura e desenho. Participou de inúmeras exposições e salões de arte, dentre os quais recebeu seis prêmios. “Acredito que a arte é algo que transcende o mundano, pois através dela enfrentamos melhor a realidade que nos cerca e nos tornamos seres mais críticos e sensíveis”, reflete o artista.
Luiz Lavalle disse sim sem saber. Sem saber para o que dizia sim. É! Há pessoas que são obsessivamente curiosas pelos detalhes de um convite. Outras, como ele, se permitem ser desejadas e aceitam dar-se um tanto ao desconhecido para, só depois, preocupar-se com a questão do até quanto.
Talvez ele discorde, mas os dedos a coçar os cabelos, primeiro ato, fez-me pensar que Lavalle é desses que confiam nas coisas que, partindo de um simples ato, voluntário ou instintivo, se constroem.
A mesa em torno da qual nos reunimos numa tarde de domingo quis ter jeito de estufa. Fazia sol e os vidros, embora transparentes, concentravam o calor e o transmitiam em ondas. Os nossos corpos suavam um tanto, pescoço, costas, bigode. E a sensação foi vantagem, pois durante a conversa percebemos que o corpo é parte [ou todo] muito importante na composição do trabalho do artista.
Porque talvez o corpo seja aquilo que só existe se representado. Na infância, desenhar costuma ser uma grande ferramenta, modo de expressão subjetiva mais que incentivado. Mas a expressão pela pintura ou pelo desenho é prescindida depois de conquistado o mundo das letras… Por isso é que, para muitos, as representações adultas quando confrontadas com um papel voltam a ser aqueles bonecos-palito.
Pergunto ao artista sobre as tatuagens do corpo, imagens que confronto enquanto falamos. Ele comenta que há de fechar o braço com elas. Vida e morte representadas no mesmo terreno. Mais uma incursão, talvez, de apropriação do corpo, coisa que Lavalle faz muito bem e desde menino.
Porque, desde lá, o mundo ele mesmo não bastava. O artista, ainda criança, tomava o suposto real como fonte para criar o real verdadeiro. Se assistia a um filme, fazia depois um desenho. Aquilo que lhe aconteceria, ou que desejava que lhe acontecesse, era [re]criado nas imagens. A arte como repositório e, ao mesmo tempo, lugar de antecipação, na criação e experiência de um tempo particular.
Para exercer o oficio de professor há mesmo que se ter um corpo muito bem apossado. Ao transmitir o que sabe sobre desenho e pintura, ele empresta, se arrisca. E talvez se veja muito apropriado por outros, o quanto seja preciso. Suporta. O corpo, então, como veículo, como ferramenta que, para funcionar, requer algum despojo. Para Lavalle, a pintura é uma arte sublime.
O verdadeiro, mais do que o real, fica marcado, então, como coisa que gravita em torno do corpo, e o artista como figura que se esforça por se reinserir no traço, lido agora não como linha e buril, mas como o símbolo linguístico da ausência de representação concreta ou final. Por isso, talvez, como artista ou professor, tantas vezes é mais fácil “resolver” os trabalhos dos demais, dando sobre eles algum palpite, do que propriamente encontrar um rumo para as próprias obras.
Estar na vida, coisa de matéria difusa – coisa de velatura. Talvez por isso, sobre o preto, sobre o nada, sobre a noite, o universo, as imagens de Lavalle possam surgir brancas, como espécie de bruma ou luz a fazer reflexo. Um corpo a contar meia história. Um corpo como a marca da luz, como pode acontecer com as fotografias que, tantas vezes, também são objeto a participar das composições do artista.
A preferência pelas telas grandes talvez seja o espaço maior onde contar que, mesmo depois de milênios de história da arte, mesmo depois de tudo ter sido feito e refeito, a arte é alguma coisa que se reinaugura, ainda. Mais do que fazer sentido é preciso que consiga impactar, é preciso que constitua matéria para levar, quem a ela se agarra, para a construção de uma narrativa.
Na época do vestibular, o artista podia ter sido design, mas incentivado por um colega, sujeito mais velho a sentar na carteira ao lado nas aulas do cursinho, foi pesquisar as Belas Artes. Foi a narrativa certa. A enciclopédia Barsa, material hoje desconhecido de tantos, porta de entrada para a busca de referências. Lavalle, ao citar com admiração diversos artistas como Gerhard Richter, Jeff Koons, Daniel Senise e David Hockney, dá-nos a dimensão da importância que é ser curioso por aquilo que já foi produzido e está em produção.
Perguntado sobre uma espécie de “apego” com relação à própria produção, Lavalle confessa que há sempre aquelas obras que, por uma razão ou outra, ou sem qualquer boa justificativa, acabam sendo evitadas quando o assunto são vendas. Talvez essas obras sejam parte de um relicário, construído de momentos, ou melhor, de representações intransferíveis sobre a passagem de um homem que, desde cedo na vida faz do desenhar sua orientação, seu ponto de vista no/do mundo.
Antes de entrevistar o Lavalle, visitei o blog dele. Foi um impacto devido a qualidade do trabalho, algo que destoa da “normoise”. Em um segundo olhar, vi a presença de mitos, diversos símbolos, um conjunto de tendências de várias épocas e inspirações da arte.
É forte no artista a exposição do ser humano no aqui e no agora, tal qual ele é. O retrata em igual importância a tudo o que é vivo. De forma fantástica, traz à tona o antropoceno, o ser humano que influência, é influenciado e sofre as consequências de suas intervenções no Planeta.
No terceiro olhar, encontro um artista com uma personalidade própria e consciência do plano que habita. Através dos limites do espaço de uma tela, permite e provoca um universo inteiro de reflexões sobre uma mesma obra.
O ciclo vida-morte-vida é uma constante. Através das vísceras expostas de um humano em decomposição, brotam trepadeiras com flores, que nos traz a força da resiliência da vida, o seu poder de regeneração diante do caos, que em teoria, explica a sua própria existência.
Bioformas é um conjunto destes elementos que são típicos do Lavalle. A entrevista com ele reforçou as primeiras impressões que tive sobre o seu trabalho.
O artista e sua obra
Ser artista plástico foi uma opção?
Desde que me conheço, sempre desenhei. Por este motivo, fiz faculdade na FAP, cursei licenciatura em Artes Plásticas, onde a ideia de ser professor e artista vieram ao mesmo tempo, foi uma consequência da própria formação.
Como percebeu esta vocação?
Quando criança dizia que queria ser desenhista, na época, não conhecia a definição artista plástico!! Posteriormente, na pré-adolescência, foi quando pensei com mais seriedade. Fiz um curso de quadrinhos onde tinha que criar uma capa e uma história, porém, fiquei o tempo todo na capa, trabalhando com a técnica de nanquim. O professor disse que eu me encaixava mais em aula de pintura artística. Depois disto passei a pesquisar artistas e respectivas obras. Em casa havia uma bíblia com as pinturas dos grandes mestres. Eu gostava de ficar folheando para ver as figuras.
Ao fazer um curso de teatro com o Paulo de Moraes do Cia. Armazém, em Londrina, PR, ele dizia que atuar era “arrancar espremendo”. Lembrei disto quando vi sua obra. Você desnuda o ser humano, expõe suas vísceras. Quais são as suas influências?
Quando eu era mais jovem as influências eram mais perceptíveis, com o tempo, fui diluindo estas influências. Hoje foco no meu trabalho e em leituras. Alguns artistas ainda são fundamentais para mim como Adriana Varejão, Daniel Senise, Tunga e os alemães Anselm Kiefer e Gerhard Richter. Gosto muito da pintura alemã contemporânea.
Tem uma linha da literatura que é a Ecocrítica, abordagem ambiental sobre uma determinada obra literária. Verifiquei em vários trabalhos seus o ser humano integrado, interferindo e sendo interferido pela natureza e, gerando consequências para si desta relação. Como exemplo, na série Futuro Primitivo e também, nesta nova exposição, Bioformas. Esta abordagem é intencional?
Com certeza! Procuro dosar esta temática com o conceito da pintura. Esta narrativa está ali, mas equilibrada com os conceitos e problemáticas da pintura. Me influencio por estas questões atuais ligadas a natureza, a tudo o que está acontecendo nos últimos anos, derivados do impacto do consumo da carne, do desmatamento, que estão diretamente ligados e a pandemia que também está atrelada a isto.
Em relação a influência da leitura na minha obra, tem o livro que se chama “O Futuro Primitivo”, sobre a antropologia anárquica, que nomeia uma das séries do meu trabalho. Outro livro que me influencia bastante é “A Política Sexual da Carne”, um livro muito impactante para se entender a questão do consumo da carne, da carne da mulher e da carne do ser humano. São as minhas leituras mais atuais.
Tem um trabalho que estará na Bioformas que chama “Retalhamento”, que é o título dado ao processo industrial que é feito com a carne. Coloco o humano, o vegetal e o animal nesta mesma situação.
Porque o nome da série Eugenia?
Tenho muitos trabalhos e muitas series que a palavra tem mais de um sentido. Eu parto do título, mas acabo pintando outra coisa. O título é dúbio e eu acabo trabalhando com questões irônicas. Esta série é um pouco mais antiga, de 2019, foi uma sequência de retratos. Eugenia se refere a limpeza étnica, feita na Alemanha nazista, a ideia da pureza na raça. As pinturas nesta serie representavam líderes de comunidades e indígenas que foram assassinados nos últimos anos no Brasil, em decorrência de uma política que visou o enfraquecimento destes povos.
Na época, eu estava pesquisando o efeito da água sanitária sobre tecidos pretos. Ela ia manchando estes tecidos e, a partir disto, produzia estes retratos. O que gerou um trabalho bem politizado, violento e intenso. A água sanitária é uma alusão a limpeza étnica que foi feita no Brasil também. A água sanitária sobre o tecido escuro faz o embranquecimento. A Bioformas está mais poética, mais velada nestas questões, mas também relaciona-se a estas temáticas.
Você escancara o mórbido, mas também a vida. Fale um pouco do ciclo vida-morte-vida na sua obra?
Eu sempre vou estar explorando isto. Acho que comecei a desenvolver esta temática a partir da obra do Tiziano, “As Três Idades do Homem”, que mostra o bebê, as várias idades do homem, até a um velho segurando uma caveira. Esta obra me despertou a discutir isto no meu trabalho, a passagem do tempo e estes processos da natureza como da História, que vejo como cíclicos. Atualmente, voltaram muitas questões que achávamos que nunca iriam retornar. A princípio são obras apocalípticas, tem uma distopia, mas deixo sempre uma possibilidade, uma esperança, no sentido de, ainda tem uma saída.
Você partiu de alguma mitologia para desenvolver a exposição Bioformas?
Utilizo referencias mitológicas, híbridos que vem de pinturas medievais, mas procuro sempre reinterpretar, reinventar estes mitos. As vezes estão mais evidentes, outras vezes não tanto. A própria mitologia Grega e passagens bíblicas têm coisas que acho interessante, muitas vezes, subverto de forma irônica. O meu trabalho é uma homenagem a pintura, a estes grandes temas que acabo explorando, atualizando e trazendo para uma discussão atual. Vou construindo à minha maneira de pensar na arte.
Existe uma simbologia, um mito implícito na sua arte. Acredito que ela cumpri com a sua função e reflete a psique humana. Sente que é isto?
Quando eu faço o meu trabalho busco o sublime, por mais romântico e antiquado que seja isto, quero que as pessoas fiquem incomodadas de alguma forma. Que reflitam sobre a vida, sobre a nossa existência, o porquê de tudo isto, que pensem a pintura, os problemas dela, como a cor, os tratamentos: liso, rugoso, as transparências, mas que tenham uma discussão existencial. Quero que o meu trabalho gere impacto. Produzo trabalhos para se ter tempo de observação, eles têm muitos símbolos e camadas. É o que busco.
Joema Carvalho, da Academia Poética Brasileira. Texto e idealização. 2022.